Não achamos maneira de falar de “moral”
sem entrar em mal-entendidos. Nada menos brasileiro que moral, quase definimos
nossa identidade pela liberalidade com esse tema. Aqui o conceito do moral está
muito restrito ao campo da sexualidade, e aqui definitivamente moral é um
conceito negativo, pega mal. Me dou conta lendo um livro de um médico indiano,
a leveza e a naturalidade com que ele fala da moral (e também do social), como
o centro do sentido da vida. Quem sabe por isso o crescimento do PIB por ano da Índia hoje seja exatos sete vezes maior que o nosso.
Para diminuir o conjunto de mal-entendidos,
precisamos perceber que moral também pode abranger outros campos. Roubar
dinheiro de pessoas pobres é um outro tipo de imoralidade, não restrita ao
campo do religioso nem do corporal. Um médico não ter perícia em uma
intervenção é exemplo de outra imoralidade, um descaso com a vida do outro. Existe
moral interpessoal, existe moral social. Assim, reduzir a “moral” à sexualidade
é o primeiro mal-entendido.
O segundo é reduzir a moralidade
aos moralistas. Na verdade todos temos “moral”, alguma moral, moralidades
diferentes ou inclusive opostas que apenas não são as mesmas. No conflito de
decidir sobre quem deverá ocupar um leito de UTI quando temos 7 candidatos e
uma vaga, cada um fará suas escolhas baseadas em critérios objetivos e em
julgamentos morais pessoais, ainda que diferentes: o idoso de 98 anos com uma
enfermidade de bom potencial de cura, ou a criança definitivamente de pobre
prognóstico? Uma frase de um artista global ilustra o ponto: ”tive que aguentar
cada filho meu se separando várias vezes sem poder dizer nada. Quando fui eu a
me separar, todos tinham reparos a fazer”. Aceitamos bem a separação em
hipótese. Não aceitamos bem quando é com nossos pais? Temos uma moral genérica
e outra específica? Uma moral pra dentro de casa em exato oposto da que temos
pra fora?
Dessa forma, a moral é um tema
pertinente a diversos campos além da sexualidade, não se restringe a moralismo
nem à religiosidade, é diferente conforme aplicada para si ou para os outros, é
universal no sentido de que todos possuem uma, guia condutas. Varia conforme a
cultura. Uma vez conheci uma moça de Berlim que chorava de genuína indignação
se passávamos um sinal vermelho de madrugada numa cidade brasileira. O amor às normas
provavelmente deve ser maior em sociedades onde esse ordenamento traz ganhos
perceptíveis para as pessoas. Entre nós, no Brasil, a ordem vigente não costuma
trazer benefícios facilmente visíveis. Quem sabe seja justamente por isso- pelo
fato do social não ser obviamente útil para o indivíduo- que não damos importância
para as normas e que aqui o bonito seja justamente desobedecê-las?
Mas todos temos uma moral, ainda
que a de um possa ser justamente a oposta da moral do outro. Simplesmente não existe
uma pessoa moralista e outra sem moral. Apenas cada pessoa tem uma moral diferente,
pessoal. No exemplo da bebida de álcool, um terá a moral de que a bebida é algo
muito positivo, outro poderá achar a bebida muito deletéria; ambos os
julgamentos são julgamentos morais, ainda que opostos. Da mesma forma existem
diferente conceitos morais quanto à maconha, divórcio, respeito a uma preferencial
no trânsito, aceitar uma inscrição num congresso em troca de mais prescrição do
fármaco de um laboratório, comer carne de animais que estiveram vivos, jogar
papel no chão, saquear caminhão de bebidas.
Desta forma, tomando-se o conceito de moral neste sentido mais amplo, se
pode analisar dois aspectos da atual crise nacional. O primeiro é que temos um
apagão moral tanto na política quanto na vida em comunidade. O segundo, é que
não conseguimos claramente discutir e pensar essa crise que é moral, pois não
lidamos, no Brasil, – como já destacado- nada bem com o conceito de “moral”.
Fica difícil ou impossível tratar
de uma doença, seja psiquiátrica ou oncológica, se não posso nomear claramente
a doença, chamá-la pelo seu nome. E nossa crise tem claramente uma natureza
moral. Se não entendermos que nossa repulsa com a corrupção é sim uma repulsa
de ordem moral, sem constrangimento de se perceber tendo uma moral, não temos
os conceitos para pensar/superar nossas dificuldades nacionais do momento. Uma
das dificuldades de discutir a crise pela qual passamos é que não esta
permitido falar em moral devido aos preconceitos e mal-entendidos que a palavra
suscita no Brasil, um país com orgulho de se supor sem moral, um país que preferiria
se imaginar independente de um senso de moral. Porém, em conflito com esse mito
de que somos livres de sentimentos morais, o país que percebe que o mesmo
dinheiro embolsado por um político falta para uma escola, está forçado a fazer
uma reflexão/julgamento que não é de outro campo que não do campo “moral”.
Na política o apagão moral se
manifesta pela ubiquidade da aceitação de financiamento em troca de defesa de
interesses do capital (que em geral, infelizmente, tem interesses opostos ao
das pessoas, pessoas sem capital mas com voto). E a política só cobra seu
sentido como uma atividade moral. Um brasileiro dizia: “fica claro que os
políticos não estão pensando em nós, apenas neles”. Mas não existe qualquer
sentido em um político que não pense nos seus eleitores, e essa reconexão com o
sentido último da política, “pensar no outro”, é que precisamos buscar como
terapêutica para a crise atual. O problema é que, novamente, “pensar no outro”
é uma qualidade moral, e das mais elevadas, e quem sabe não tenhamos qualquer
brasileiro disposto a essa tarefa semi religiosa, quase messiânica. De fato, o
individualismo em curso no nosso meio como valor moral tão arraigado, não é um
campo fecundo para grandes vocações coletivistas, ou políticas.
Por fim importa dizer que nosso
apagão moral absolutamente não está restrito à política. Chama mais atenção o
apagão moral na política pela escala inédita no planeta (algo assim vimos
apenas na Itália), por estar quase inviabilizando a eficácia de nossa
democracia, por reafirmar imagens nacionais jargoniosas (o carioca malandro, o
Zé Carioca). Mas temos exemplos do apagão moral na nossa economia e na nossa
produção. Crises morais acometem vastos seguimentos dos meios de produção
nacionais e internacionais (mentira dos bancos americanos quanto aos balanços,
das montadoras de carro quanto a poluição). E na vida das pessoas, o apagão
moral pode ser evidenciado no trânsito de qualquer cidade, na escalada
impressionante de violência urbana, na frequência de abuso de drogas (evidenciando
o valor moral do prazer como categoria absoluta e não relativa), nos altos índices
de inadimplência bancária.
A tese portanto é simples: fica mais
complicado entender uma crise como a nossa sem poder usar o termo moral, entre
nós um termo que se presta a preconceitos e mal-entendidos, sempre visto
pejorativamente. Exatamente por não concordarmos que ter uma moral não é
negativo, mas antes algo intrínseco do ser humano, exatamente por nossa má
vontade nacional com o conceito, é que temos uma crise de natureza
exclusivamente moral que não conseguimos superar. Não superamos pois não
podemos nominá-la como uma crise “moral”. Enquanto não pudermos fazer um acordo
sobre a palavra “moral”, enquanto não tivermos uma categoria diagnóstica clara
para nomear nosso padecimento, enquanto não a naturalidade de nos vermos como
sujeitos necessariamente morais, não saberemos lidar com a enfermidade atual do
país, que para nosso constrangimento de pretensos malandros é sim de natureza
moral.
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