domingo, 21 de maio de 2017

Com vergonha de se perceber como um ser moral, o brasileiro não consegue pensar a crise de apagão moral pela qual tanto ele quanto o país passa.




Não achamos maneira de falar de “moral” sem entrar em mal-entendidos. Nada menos brasileiro que moral, quase definimos nossa identidade pela liberalidade com esse tema. Aqui o conceito do moral está muito restrito ao campo da sexualidade, e aqui definitivamente moral é um conceito negativo, pega mal. Me dou conta lendo um livro de um médico indiano, a leveza e a naturalidade com que ele fala da moral (e também do social), como o centro do sentido da vida. Quem sabe por isso o crescimento do PIB por ano da Índia hoje seja exatos sete vezes maior que o nosso.
Para diminuir o conjunto de mal-entendidos, precisamos perceber que moral também pode abranger outros campos. Roubar dinheiro de pessoas pobres é um outro tipo de imoralidade, não restrita ao campo do religioso nem do corporal. Um médico não ter perícia em uma intervenção é exemplo de outra imoralidade, um descaso com a vida do outro. Existe moral interpessoal, existe moral social. Assim, reduzir a “moral” à sexualidade é o primeiro mal-entendido.
O segundo é reduzir a moralidade aos moralistas. Na verdade todos temos “moral”, alguma moral, moralidades diferentes ou inclusive opostas que apenas não são as mesmas. No conflito de decidir sobre quem deverá ocupar um leito de UTI quando temos 7 candidatos e uma vaga, cada um fará suas escolhas baseadas em critérios objetivos e em julgamentos morais pessoais, ainda que diferentes: o idoso de 98 anos com uma enfermidade de bom potencial de cura, ou a criança definitivamente de pobre prognóstico? Uma frase de um artista global ilustra o ponto: ”tive que aguentar cada filho meu se separando várias vezes sem poder dizer nada. Quando fui eu a me separar, todos tinham reparos a fazer”. Aceitamos bem a separação em hipótese. Não aceitamos bem quando é com nossos pais? Temos uma moral genérica e outra específica? Uma moral pra dentro de casa em exato oposto da que temos pra fora?
Dessa forma, a moral é um tema pertinente a diversos campos além da sexualidade, não se restringe a moralismo nem à religiosidade, é diferente conforme aplicada para si ou para os outros, é universal no sentido de que todos possuem uma, guia condutas. Varia conforme a cultura. Uma vez conheci uma moça de Berlim que chorava de genuína indignação se passávamos um sinal vermelho de madrugada numa cidade brasileira. O amor às normas provavelmente deve ser maior em sociedades onde esse ordenamento traz ganhos perceptíveis para as pessoas. Entre nós, no Brasil, a ordem vigente não costuma trazer benefícios facilmente visíveis. Quem sabe seja justamente por isso- pelo fato do social não ser obviamente útil para o indivíduo- que não damos importância para as normas e que aqui o bonito seja justamente desobedecê-las?
Mas todos temos uma moral, ainda que a de um possa ser justamente a oposta da moral do outro. Simplesmente não existe uma pessoa moralista e outra sem moral. Apenas cada pessoa tem uma moral diferente, pessoal. No exemplo da bebida de álcool, um terá a moral de que a bebida é algo muito positivo, outro poderá achar a bebida muito deletéria; ambos os julgamentos são julgamentos morais, ainda que opostos. Da mesma forma existem diferente conceitos morais quanto à maconha, divórcio, respeito a uma preferencial no trânsito, aceitar uma inscrição num congresso em troca de mais prescrição do fármaco de um laboratório, comer carne de animais que estiveram vivos, jogar papel no chão, saquear caminhão de bebidas.
Desta forma, tomando-se o  conceito de moral neste sentido mais amplo, se pode analisar dois aspectos da atual crise nacional. O primeiro é que temos um apagão moral tanto na política quanto na vida em comunidade. O segundo, é que não conseguimos claramente discutir e pensar essa crise que é moral, pois não lidamos, no Brasil, – como já destacado- nada bem com o conceito de “moral”.
Fica difícil ou impossível tratar de uma doença, seja psiquiátrica ou oncológica, se não posso nomear claramente a doença, chamá-la pelo seu nome. E nossa crise tem claramente uma natureza moral. Se não entendermos que nossa repulsa com a corrupção é sim uma repulsa de ordem moral, sem constrangimento de se perceber tendo uma moral, não temos os conceitos para pensar/superar nossas dificuldades nacionais do momento. Uma das dificuldades de discutir a crise pela qual passamos é que não esta permitido falar em moral devido aos preconceitos e mal-entendidos que a palavra suscita no Brasil, um país com orgulho de se supor sem moral, um país que preferiria se imaginar independente de um senso de moral. Porém, em conflito com esse mito de que somos livres de sentimentos morais, o país que percebe que o mesmo dinheiro embolsado por um político falta para uma escola, está forçado a fazer uma reflexão/julgamento que não é de outro campo que não do campo “moral”.
Na política o apagão moral se manifesta pela ubiquidade da aceitação de financiamento em troca de defesa de interesses do capital (que em geral, infelizmente, tem interesses opostos ao das pessoas, pessoas sem capital mas com voto). E a política só cobra seu sentido como uma atividade moral. Um brasileiro dizia: “fica claro que os políticos não estão pensando em nós, apenas neles”. Mas não existe qualquer sentido em um político que não pense nos seus eleitores, e essa reconexão com o sentido último da política, “pensar no outro”, é que precisamos buscar como terapêutica para a crise atual. O problema é que, novamente, “pensar no outro” é uma qualidade moral, e das mais elevadas, e quem sabe não tenhamos qualquer brasileiro disposto a essa tarefa semi religiosa, quase messiânica. De fato, o individualismo em curso no nosso meio como valor moral tão arraigado, não é um campo fecundo para grandes vocações coletivistas, ou políticas.
Por fim importa dizer que nosso apagão moral absolutamente não está restrito à política. Chama mais atenção o apagão moral na política pela escala inédita no planeta (algo assim vimos apenas na Itália), por estar quase inviabilizando a eficácia de nossa democracia, por reafirmar imagens nacionais jargoniosas (o carioca malandro, o Zé Carioca). Mas temos exemplos do apagão moral na nossa economia e na nossa produção. Crises morais acometem vastos seguimentos dos meios de produção nacionais e internacionais (mentira dos bancos americanos quanto aos balanços, das montadoras de carro quanto a poluição). E na vida das pessoas, o apagão moral pode ser evidenciado no trânsito de qualquer cidade, na escalada impressionante de violência urbana, na frequência de abuso de drogas (evidenciando o valor moral do prazer como categoria absoluta e não relativa), nos altos índices de inadimplência bancária.
 A tese portanto é simples: fica mais complicado entender uma crise como a nossa sem poder usar o termo moral, entre nós um termo que se presta a preconceitos e mal-entendidos, sempre visto pejorativamente. Exatamente por não concordarmos que ter uma moral não é negativo, mas antes algo intrínseco do ser humano, exatamente por nossa má vontade nacional com o conceito, é que temos uma crise de natureza exclusivamente moral que não conseguimos superar. Não superamos pois não podemos nominá-la como uma crise “moral”. Enquanto não pudermos fazer um acordo sobre a palavra “moral”, enquanto não tivermos uma categoria diagnóstica clara para nomear nosso padecimento, enquanto não a naturalidade de nos vermos como sujeitos necessariamente morais, não saberemos lidar com a enfermidade atual do país, que para nosso constrangimento de pretensos malandros é sim de natureza moral.  

sexta-feira, 19 de maio de 2017

Cultura da honra, cultura da dignidade, cultura da vitimização



Pela volta do conceito de honra

Aprendeu a desconfiar desde jovem daqueles que pretendiam ter o monopólio da posição de "vítimas". Que década complicada na latino-américa, pois o vitimismo tomara o poder, com suas denúncias, deputados recorrendo o país com o esqueleto de Jango em comícios e outras estranhas formas de dar voz política ao "eu sofro" como análogo narcisista. o "eu sofro" como commodity, minha dor um Palmolive....Não é apenas que eu sofra, é “que olhem o TAMANHO da minha dor!” Ai que saudades daquele tempo em que política não era pra vítimas, nem denuncismos, mas era o tempo pra "honra", ou pelo menos pra "dignidade"! Lembram? lembram de Brizola na sacada do Piratini com uma metralhadora dizendo que não passarão? Não esse bando de macacões de fábricas borrados nos bancos frios da chefatura de Pinhais....Sindicalistas materialistas, blegues, que década infeliz e sem honra!
O século que agora inicia vem com essa cultura da vitimização (conceito de Campbell e Manning). O bom de denunciar é que é um ato de purificação. Não apenas meu objeto fica coberto de monopólio dos impulsos agressivos, é que me purifico, fico eu o denunciante distituido de qualquer propósito agressivo. Se o inferno são os outros, é quase análogo de eu sou um céu.
E por esse processo de canonização das vítimas, temos índios quase como categorias sacralizadas. Esse funcionamento de categorias é infenso ao conceito de pós modernidade de simultaneidades: um índio injustiçado bem pode ser pedófilo, um negro pode ser ávaro, ou ter mal hálito,  um homosexual pode ser de direita, um idoso pode ser um Pinochet e ter matado centenas de milhares, uma criança pode ser cruel, um ciclista pode desobedecer as normas do trânsito. Mas na cultura da sacrilização das minorias, isso não se imagina, pois não apenas o denunciador vitimizado tem o monopólio do sofrimento, como ainda é uma categoria absoluta, como Cristo. Ou alguém imagina Cristo com mal hálito, ou desobedecendo uma regra de trânsito da Galiléia?
Outro dia entrei em um onibus de uma empresa pública da prefeitura de Porto Alegre: não havia bancos para as pessoas. Todos os bancos eram reservados para as mais de centenas de categorias de vítimas, que inclusive, muitas não pagavam. Acontece que uma empresa em que ninguém pague pela passagem é economicamente inviável. E procurando bem, qualquer um é vítima em algum quesito. O empoderamento de todos os denuncismos fez essa sociedade uma coisa inviável. Exatamente como dizia Mao: se cada chinês for ter uma automóvel, o que é justo, tornaria a cidade chinesa algo impossível. Hoje todos temos ar condicionado, o que inviabiliza o planeta, ainda que seja absolutamente justo. O direito pra todos é correto, apenas inviável. 


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