Filme ; "Menos que Nada" - De Carlos Gerbase
Os 20 anos da reforma psiquiátrica no
Rio Grande do Sul: um holocausto bem intencionado
O modelo do manicômio é uma herança
de 100 anos que não se renovou, e muito nos envergonha. O fim do manicômio foi
proposto, em lei, pelo partido dos trabalhadores no Rio Grande do Sul em 9 de
novembro, há exatos 20 anos. Portanto hoje é um bom dia para avaliarmos a
eficiência em Porto Alegre dos assim denominados “modelos alternativos”.
Pela proposta da época, o fechamento
dos leitos para doentes crônicos viria acompanhado de simultânea construção de
redes alternativas, multidisciplinares Este atendimento seria prioritariamente
ambulatorial e, se não evitasse a doença crônica, pelo menos manteria os
vínculos familiares e sociais dos doentes.
Infelizmente esse modelo “alternativo”
não foi implementado de fato. O pouco que se fez, não tem escala, não atende
nem 10% da demanda real. O atendimento que dá é antiético, tecnicamente errado.
O doente crônico segue existindo, porém não
esta mais abrigado no manicômio. O que não significa que esteja em posição
muito melhor. Hoje este doente esta em prisões, é morador de rua, esta na Febem,
esta preso no vício das drogas, veio a falecer por crise psiquiátrica
(suicídio, quadro psicótico) ou por doença de clínica geral (tuberculose, AIDS,
por exemplo). Muitos, entre os com mais dinheiro, estão em novos manicômios
muito mais perigosos, pois privados (fazendas religiosas, clínicas geriátricas):
em um hospital privado, maior é o risco de se evitar a alta por ganhos
econômicos.
Foi implementada a destruição do
antigo modelo com rapidez, inclusive pelo custo do leito do doente crônico que
é muito elevado. E nada foi feito de alternativo. São vinte anos deste projeto “antimanicomial”,
que de fato é uma teoria a serviço de mais morbi-mortalidade. E nenhuma ideia
justifica uma morte humana. Teoria inclusive não exatamente nova, pois remete a
Pinel e seu gesto clássico de soltar os doentes das amarras.
A população de doentes psiquiátricos
crônicos é uma população especialmente vulnerável. Muitas vezes com menos
capacidade política de se defender e organizar em torno de seus direitos,
também é população com menos vínculos familiares, com menos recurso econômico.
A doença empobrece afetiva e economicamente. Portanto é uma população que não
pode se defender bem de seus “libertadores”.
Como estes 20 anos de falta de leito significaram
um número expressivo de mortes e também de sofrimento (pais com filhos
acorrentados em casa são apenas a manchete de uma realidade muito maior),
podemos falar que a ideologia antimanicomial, de forma análoga ao nazismo, é
uma ideia a serviço de morte de seres humanos. De um grupo de seres humanos
mais frágeis, com menos capacidade de se defender desta ideologia. Também em
paralelo ao nazismo, esta ideologia provocou um holocausto, a morte sistemática
em 20 anos de um número expressivo de pessoas por falta de recursos médicos que
existem (leito e psicofármacos evitariam estas mortes) e deveriam ter sido
oferecidos pelo estado.
Como uma forma de marcar os 20 anos
desta omissão, parece pertinente a sugestão ao sindicato médico, ou para alguma
associação de psiquiatras, ou de familiares de doentes psiquiátricos, que entre com uma representação em órgão internacional
pedido julgamento do que tem a marca dos crimes contra a humanidade. Os autores
do movimento hoje ocupam altos cargos tanto no governo petista estadual, quanto
no governo federal: são responsáveis tanto pela desassistência do fechamento do leito manicomial, quanto pela não construção de algo
alternativo. Seja na OEA, ou no tribunal
de Haia, podem e devem ser responsabilizados pela mortandade que o fechamento
puro e simples de leitos psiquiátricos causou. Hoje é um bom dia para a
abertura de uma denúncia destas. Vinte anos de uma teoria já são uma prática:
uma prática pior que o manicômio que a teoria denunciava. Como dizia aquele
velho professor sobre as ideias em psiquiatria: as teorias são uma beleza, o
diabo é quando os dados da prática teimam em desmenti-las.