quarta-feira, 21 de setembro de 2011

O conceito de “democracia real” é diferente no Brasil do que é na Espanha? Ou o que nos falta para reificar nossa democracia é diferente do que falta na Espanha?

O conceito de “democracia real” é diferente no Brasil do que é na Espanha? Ou o que nos falta para reificar nossa democracia é diferente do que falta na Espanha?

No ano de 2011, durante a crise social e política dos países periféricos europeus, o termo “democracia real” passou a ser difundido, em especial pelos movimentos de rua e pelas redes sociais espanholas. A crise européia econômica teve seu início com os empréstimos em 2008 que o poder público precisou fazer aos bancos privados. Como bancos europeus também tinham feito empréstimos aos países da Europa periférica, mesmo com a ajuda estatal, existe dúvida tanto da solvência destes países tomadores dos empréstimos, quanto dos bancos doadores dos recursos. Sabe-se que os estados não possuem mais recursos para “salvar” os bancos, por muito endividamento. E os desdobramentos desta crise de endividamento público e privado repercutem hoje na Europa periférica, com custos elevados em cortes sociais. No caso da Espanha, o estouro da bolha imobiliária, gerou também uma tensão entre proprietários insolventes de imóveis financiados, e novamente os bancos, que estão retomando os imóveis dos inadimplentes.
Desta forma, no contexto europeu, o termo “democracia real” tem um significado específico.               No contexto espanhol, por exemplo, reclamar por uma democracia real, é denunciar a influência do capital especulativo sobre os estados eleitos. É falar da socialização das dificuldades dos bancos privados. Denunciar a retomada de imóveis pelos bancos, com auxílio da justiça e da polícia. Naquele contexto é falar da severa crise econômica e da perda do estado de bem estar social difundido na Europa nas últimas décadas. Quando o capital especulativo tem mais influência que o estado eleito, de fato uma dose de “irrealismo”, ou antes de “falsidade”, “distorção”, está presente na democracia espanhola, grega, italiana, portuguesa. Simplesmente a sociedade civil, e portanto a política, e o estado nacional podem menos – em diversos contextos- que o capital, e as estruturas supra-nacionais,  que não foram eleitas.
                O termo “democracia real” encontrou pouca ressonância na juventude brasileira. Não tivemos acampamentos como os espanhóis ou revoltas mais desorganizadas como na Inglaterra. Isso nos levaria a supor um modelo democrático mais satisfatório para o caso brasileiro? Acaso temos um modelo que espelha com mais qualidade a vontade da população? Os bancos, a taxa de juros e o poder do capital internacional são menos influentes em nosso meio? Temos a questão da moradia mais resolvida?
Nada disso parece ser real. Mas se nosso sistema representativo e nossa democracia não são perfeitos, as dificuldades no Brasil são de natureza diferente e particular com relação as realidades européias.   Na verdade a qualidade de nossa democracia também é ruim, ainda que o que nos separa de uma democracia mais real sejam problemas seguramente diferentes dos problemas europeus.
                No nosso meio, as distorções ou falsidades do modelo político que tiram dele uma maior qualidade democrática são particulares.  Tomando como oposição ao termo “democrático”, o sentido de autoritário, no nosso sistema temos os seguintes autoritarismo para vencer, se desejarmos uma democracia mais real, ou de mais qualidade:
 1) o autoritarismo dos financiadores eleitorais;
2) autoritarismo da ignorância pela falta de escolaridade formal do eleitor;
3) autoritarismo do tempo na TV;
4) autoritarismo de poder de veto de forças supra-políticas (militares, igrejas evangélicas);
5) autoritarismo dos humanos sobre o meio-ambiente;
6) autoritarismo da violência (milícia, narcotráfico, desmatadores);
7) autoritarismo de votar em leis inconstitucionais; 
8) autoritarismo da desigualdade de direitos, direitos não eleitorais (como educação, saúde, qualidade de vida)
9)autoritarismo da corrupção
10) autoritarismo da impunidade, da morosidade jurídica, da diferença de acesso ao poder judiciário.

                Conquistar uma democracia real no caso brasileiro, portanto, é uma tarefa de dez diferentes desafios. Uma melhor qualidade de nossa democracia é uma construção multi-dimensional e de longo prazo, que deve focar atenção aos diferentes vetores de autoritarismo que ameaçam a qualidade de nosso sistema político. Felizmente aperfeiçoamentos tem sido alvo de discussão na sociedade civil e nos meios políticos, como se vê, por exemplo, no atual debate sobre o voto distrital e sobre a reforma política.
1 O autoritarismo dos financiadores eleitorais; seguramente é o ponto que mais distorce o princípio democrático de nosso processo político. O político é eleito pelo voto do cidadão, mas para se eleger precisa do financiamento do capital. Naquelas situações em que não existe confluência entre o interesse do capital e o interesse da população, observamos a parcialização dos políticos contra os interesses da população, em favor do capital. Financiamento de campanha sem donativos de empresas é, portanto, uma imposição: inclusive pelo princípio elementar de que pessoa jurídica não vota. Apenas doações de pessoas físicas deveriam ser permitidas, e até um limite pré-determinado, baixo. As doações deveriam ser on-line, públicas, com rastreabilidade. A imprensa deve ser livre para divulgar quem financia quem até mesmo no dia das eleições.
2 Autoritarismo da ignorância, ou a baixa escolaridade formal do eleitor; A escolaridade baixa, a má qualidade do ensino geral do país são uma ameaça à capacidade de crítica da população, gerando um cabresto do eleitor na publicidade. O desenvolvimento da escolaridade saber do povo é a condição da emancipação política dos eleitores, e não por outro motivos os governos com projeto de permanência no poder são lentos em melhorar a educação. Um outro tipo de autoritarismo é o do desconhecimento por parte do político que decide, ou mesmo a desautoridade do saber (que é diferente, por ser uma crítica ao saber como algo negativo, uma característica do governo Bush filho) que também são ameaças à democracia real no Brasil. Temos senadores que se lançam a aprovar o código florestal e o maior desmatamento e que afirmam que a ciência mostraria que a agricultura é boa para o seqüestro de carbono! Muitos estão criticando a escolha de ministros do turismo sem conhecimento da área.
3. Autoritarismo do tempo na TV; Partidos estabelecidos no poder criam regras para impedir que partidos novos difundam novas idéias. É um projeto de dificultar a renovação da política, um projeto reacionário. O exemplo do tempo de TV maior para partidos de maior bancada é um exemplo deste movimento pela diminuição da difusão de novas idéias. Henrique Fontana pretende um financiamento maior para partidos maiores. Numa democracia real, não existe motivo para idéias diferentes serem diferentemente difundidas ou financiadas.
4. autoritarismo de poder de veto de forças supra-políticas (militares, igrejas evangélicas); Em entrevista ao Estado de São Paulo (http://www.estadao.com.br/noticias/suplementos,a-liberdade-que-nos-une,773927,0.htm) , Scott Mainwaring destaca que o poder de veto de militares é menor hoje na democracia brasileira, o que é uma realidade. Contudo parece que o poder de veto da igreja estaria maior, como vimos em alguns momentos da eleição presidencial de 2010. Governos eleitos no Brasil não estão sujeitos ao poder de veto de grupos religiosos, mas suas idéias sim. Caso sejam idéias contrárias ao credo de alguma religião majoritária, diversos assuntos são retirados da pauta.
5. Autoritarismo dos humanos sobre o meio-ambiente; Obviamente que não apenas no Brasil, a democracia é o poder de pessoas sobre as decisões coletivas. Apenas por esta razão, os interesses de pássaros, florestas e seres vivos não humanos não são representados na democracia. Políticos nunca desejam trazer más notícias ou limitações para a vontade das pessoas. Não seria popular, e portanto teria mais dificuldade de ganhar uma eleição, o candidato que falasse em más notícias: menos emprego, menos energia elétrica, menos carros, menos consumo, menos satisfação. Neste sentido a democracia, ou pelo menos a maior parte delas no mundo, é sim um sistema anti-ecológico: por um viés de constituição –animais não votam- tende a favorecer interesses humanos sobre os do meio ambiente, na medida em que favorece a eleição de uma maior representação dos interesses das pessoas, em oposição aos interesses dos demais seres vivos. A votação do código florestal no Brasil ilustra esse peso maior do lucro contra o peso da conservação na política.  Os 20% de votos para uma candidata do PV foram uma grata surpresa de maior poder do meio ambiente, ainda que a candidata difundisse uma complexa teoria da possibilidade de conciliação do desenvolvimento com a preservação, um discurso apelativo mas não necessariamente factível.
6. Autoritarismo da violência (milícia, narcotráfico, desmatadores); As denúncias do deputado Marcelo Freixo (PSOL-RJ) sobre o loteamento do estado do Rio de Janeiro pelas milícias ilustram a dificuldades da democracia de ser real diante deste tipo de ameaça de autoritarismo. Ainda que o problema pareça ser muito mais grave no Rio de Janeiro do que em outros estados do Brasil, nada impede sua difusão nacional. Da mesma forma que as milícias, o narcotráfico também é uma ameaça à democracia real, e o caso do México deve servir de alerta para a sociedade civil sobre um novo tipo de ditadura e de terror que podem acabar, ou pelo menos limitar a qualidade da democracia em nosso meio.
7) autoritarismo de votar em leis inconstitucionais;  Em Porto Alegre, a câmara de vereadores pela maioria de 30/34 votos aprovou a entrega de uma área pública, o cais do porto e algumas adjacências de orla do Guaíba, para serem loteadas por grupos privados. Uma afronta ao direito constitucional, pois não é prerrogativa dos representantes do povo a doação ou venda de bens dos representados.  Da mesma forma, a louvável lei da ficha limpa foi dada como inconstitucional pelo STF. Não parece também constitucional aprovar um código florestal que traga como decorrência risco de severo desequilíbrio do clima, por meio de mais desmatamentos. Não é constitucional que políticos possam decidir, ainda que indiretamente, por alagamentos, catástrofes e morte de seu povo.  A constitucionalidade do poder dos representantes deve ser melhor estabelecida, ainda que em votações de conteúdo justo.
8) autoritarismo da desigualdade de direitos, direitos não eleitorais (como educação, saúde, qualidade de vida). Discutindo o conceito de democracia, na mesma matéria do Estado de São Paulo citada acima, Leonardo Morlino fala que ademais de liberdade eleitoral, a boa qualidade democrática também pressupõe a igualdade: “não é possível haver liberdade sem algum nível de igualdade no que se refere à educação, qualidade de vida, assistência médica, etc. E vice-versa.” O Brasil é um dos países mais desiguais, ainda que existam progressos nesse aspecto. Lamentavelmente os progressos na diminuição da desigualdade são mais devido a distribuição de renda do que devido a qualificação de serviços de educação e saúde. Maior igualdade de poder de consumo apenas , com maior disparidade de nível educacional e de nível de saúde são conquistas discutíveis, e seguramente são disparidades que ameaçam a qualidade da democracia. O eleitor além do direito de escolha, precisa ter o direito de estar vivo para votação, bem como ter instrumentos de cognição para acompanhar criticamente os debates nacionais.
9) Autoritarismo da corrupção. A violência da corrupção não é apenas material (como no exemplo do desvio de dinheiro da merenda escolar), é antes de tudo uma violência de expectativas, ou uma violência emocional. Partidos moralistas e pautados pelo discurso da moralidade chegaram ao poder no Brasil praticando um dos governos mais corruptos da história republicana (José Álvaro Moisés, em matéria do Estado de São Paulo citada). O sentimento de desilusão que esta “quebra de contrato” significou é perigosa, por favorecer um descrédito da democracia como sistema. Mas é  perigosa também por retirar de quem critica a razão, já que desmoraliza a oposição (já que o crítico, quando no poder, fará a mesma coisa). Também é perigosa por desmoraliza o novo (novos atores políticos, hoje muito críticos, no futuro farão como os velhos que hoje recriminam). A metamorfose do PT em seus antecessores é o desastre político mais grave que ameaça a nossa democracia, já que esta afirmando que devemos desprezar toda a discordância, pois ela é a mesma coisa. Seguramente este é o motivo da hipotrofia crescente das forças de dissenso na política brasileira; se todos são o mesmo, por que trocar de partidos? Paradoxalemente, a desilusão com o PT é a garantia de sua permanência no poder, e a garantia da desmoralização de seus jovens opositores.
O PT no poder não apenas desmoralizou o conceito de oposição; desmoralizou o conceito de juventude, de idealismo, de esquerda, de esperança, de denúncia, de brabeza. Se antes do PT no poder o ícone da juventude era, por exemplo, um revolucionário como Che Guevara, o ícone dos movimentos jovens atuais é um palhaço. A contestação foi portanto desglamurada, e o crítico de Che que era, virou um palhaço. A figura do palhaço, auto imposta pelos jovens nas marchas de 7 de setembro, é uma síntese do que é ser oposição hoje em dia: ser crítico não é ser sério! Saem os caras pintadas, entram os narizes de bolinha. Se o PSOL não cresce hoje em sua crítica ao PT é devido ao fato que todos pensamos: hoje criticam, amanha irão copiar os alvos de suas críticas atuais. Em sua década de poder, o PT conseguiu o que Golbery sempre sonhara, mas não logrou realizar, que é desmoralizar a esquerda. E o grande componente desta perda de autoridade é a corrupção.
10) autoritarismo da impunidade, da morosidade jurídica, da diferença de acesso ao direito conforme o nível social do cidadão. As imperfeições do judiciário, seja na punição dos políticos corruptos, seja mesmo no desempenho de suas demais atribuições, seja na dificuldade de acesso universal, cria uma cultura do ilícito como valor positivo, que não é necessariamente uma definição da alma nacional, mas uma decorrência do judiciário acanhado em tamanho e eficiência. É sim uma postura autoritária a noção do “não dá nada”, que sendo realista (pois de fato nada acontece), justifica a quebra da ordem e portando do direito. O poder do povo é desrespeitado quando uma igreja promove um show até depois das 22:00 horas, e o autoritarismo dos cantores só é possível pois de fato “não dá nada”, ou seja, nada de jurídico ou coercitivo acontece.
Os elementos acima são ameaças à qualidade de nossa democracia. Também são pontos de intervenção a serem modificados para tornarmos a nossa uma democracia mais aperfeiçoada. É importante notar que nenhum destes aspectos pode ser deixado de lado, pois cada ameaça pode sim destruir um projeto de horizontalidade de poder entre todos. Como enfermidades de características diferentes, todas as ameaças podem levar ao falecimento da democracia. São imperfeições que diminuem a qualidade de nossa democracia e que precisam ser enfrentadas para conquistarmos a reificação da democracia. São aspectos especificamente brasileiros, já que nossas dificuldades com autoritarismo e com democracia são muito diferentes das européias. Desta forma, lutar por “democracia real” no Brasil é pleitear uma pauta de melhorias sócio-políticas muito diferentes das espanholas ou inglesas. De uma forma resumida nossa democracia padece de falta de educação formal do eleitor, de uma parcialização absurda dos políticos com o capital e contra o povo (decorrência do processo eleitoral?) e de corrupção, bem como de desmoralização da esperança; Já as dificuldades de qualidade da democracia em países periféricos europeus são relacionadas com a impossibilidade do estado nacional de manter conquistas sociais e manter sua independência frente aos interesses supra-nacionais dos bancos e do capital especulativo.  São de fato irrealidades, ou inconsistências democráticas  bastante diferentes.




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