Todos somos Ricardo Neis: liberdade ao mártir da lei de carros subsidiados de Lula. Pela lei da obrigatoriedade de carroças no meio urbano de Porto Alegre.
Todos somos Ricardo Neis. A Síndrome de Ricardo Neis (SRN) é uma entidade sócio-emocional, que tem penetrância variável, ou seja, pode se manifestar de forma completa – quando de fatos agimos nossos sentimentos- ou parcial, quando não agimos e apenas sentimos fúrias intensas no trânsito. Ontem chovia, tinha um jogo do time da várzea as 19:30, e todos ficamos 40 minutos tentando cruzar o parcão. Eu mesmo passei 2 horas preso no engarrafamento, para fazer não mais que 3 ou 4 kilometros. O interessante não é que tenha visto um ou outro motorista ao lado com síndrome: o fato inegável é que todos, eu e todos, éramos Ricardo Neis. Quando estamos com a SRN, não é que tenhamos um desapreço particular por bicicletas, é que matamos metafóricamente ou nem tanto qualquer coisa que invada nossa obstinada e frustante propriedade dos 2 cm “nossos’ a frente, matamos tudo que frustre nossa vontade de avançar dois centímetros.
Ricardo Neis, como foi mundialmente noticiado e visto no youtube, avançou seu carro sobre ciclistas que lhe obstruíam a passagem. Poderiamos fazer um check list de revistas femininas, com algumas perguntas e com diferentes respostas valendo pesos diferentes, para verificar o quanto estamos contaminados (em mais ou menos intensidade) pelo vírus da SRN: vc pula na frente do carro ao lado, tão logo ele deixe dois milímetros de distância do carro da frente? Vc entra na preferencial com estudada impetuosidade obrigando o incauto motorista que vinha na preferencial a quebrar toda a arcada dentária no volante? Vc para com objetivo de ver se vem carro na preferencial mais ou menos no meio da rua, de forma que não reste mais alternativa ao que vinha do que deixar vc passar? Vc acelera até 150 km apenas para chegar na esquina onde vc tem a preferencial antes que os carros que desejam cruza-la tenha qualquer possibilidade de faze-lo? Vc como pedestre avança sobre a faixa de segurança indiferente se o carro que vem vindo vai conseguir salvar sua vida? Quando vc esta de moto, vc se comporta como um camicase urbano?
O sentimento que temos quando estamos com SRN é que temos que andar. Esse sentimento é a todo momento frustrado pela realidade inacreditável da mobilidade urbana atual, que não é mais a que foi um dia. Quanto mais cavalos temos de máquina, mais nos sentimos uns asnos. Tenho inclusive um projeto para sugerir aos vereadores, a obrigatoriedade da carroça para todos: se é para andar na velocidade de 10 Km/hora, de cavalo ou charrete (poderiam ser animais públicos, do tipo que se pega no centro e se larga no parcão) é mais lúdico, e tem muito menos impacto de pegada de carbono.
Provavelmente a principal causa da fúria e da conduta intimidatória no transito é justamente o trânsito, que se mostra excessivamente saturado. O estresse de um trânsito (ou antes, um não trânsito) congestionado em escalas que dão medo, faz o motorista ser tomado de agressividade, medo e frustração. Ainda é uma surpresa levar 45 minutos em trechos que costumávamos levar 10 minutos, e obviamente “a culpa” pela demora são os demais carros ao redor e – mais ainda- na frente.
Considerando que estamos a todo momento tendo que não fazer uso de todos os cavalos de potência que temos, que estamos vivendo a castração da potência em sentido Freudiano, estamos a todo momento anulando potência. Se um ser "mais fraco" (uma moto, bicicleta, ou pior ainda um pedestre) age conosco de forma arrogante, impondo sua fragilidade como uma arma, a pergunta na mente do portador de SRN é: por que passo o dia tendo que me anular, sendo forte, e esse ser mais frágil age de forma intimidatória comigo, não estando armado? A lei do Fogaça de por a mão para sinalizar o desejo de atravessar na faixa de segurança é um pedido de passagem: muitos pedestres avançam confiantes, partem para a ação antes de pedir passagem, em uma postura de imposição. E é justamente essa “lei do mais fraco”, ou antes a "tirania do mais fraco" (em tudo semelhante, inclusive na imposição e imoralidade a do mais forte) que irrita quem vem de duas horas de engarrafamento, em portadores de SRN.
O motorista, desta forma, é um ser vítima de agressividade de iguais e de mais fracos, que esta trancado em sua máquina altamente potente e impotente e que, devido a tédio e raiva, passa a jogar games de ocupar avanços: não importa se é um jogo de "ao vencedor as batatas", é o que se pode jogar em meio a tanto tédio. Um outro componente da SRN, além do jogo de Gerson, da frustração, de que todos jogam o jogo do “fato-consumado” e que todos jogam o jogo da imposição, é o que denominaríamos de “direito proporcional ao IPVA”. Na mente de muitos de nós, quem paga IPVA (motorista) tem maior posse do espaço urbano do quem não paga (pedestre), tendo inclusive uma certa primazia de passagem, como certas castas na India.
Esse "acréscimo de direito" pelo IPVA é reforçado pelo poder público que encurta o tempo da sinaleira de pedestre, que "come" parques ( Fortunati acaba de rasgar o parque Marinha com imensa avenida para carros, com o silencioso consentimento da população) para fazer ruas, que diminui calçadas (e árvores da calçada) para alargar avenidas. Concordar com mais direitos para quem paga IPVA é, contudo, injusto, pois o espaço ocupado por apenas 1 cidadão (motorista) é 80% maior quando contamos o carro ao redor dele. Se observamos uma rua estreita com 8 ou nove carros, ela esta “tomada” e trancada. Mas não temos mais que nove pessoas causando aquele problema, e na calçada temos um número maior de pedestres usando o espaço urbano, com muito mais harmonia.
Esse "acréscimo de direito" pelo IPVA é reforçado pelo poder público que encurta o tempo da sinaleira de pedestre, que "come" parques ( Fortunati acaba de rasgar o parque Marinha com imensa avenida para carros, com o silencioso consentimento da população) para fazer ruas, que diminui calçadas (e árvores da calçada) para alargar avenidas. Concordar com mais direitos para quem paga IPVA é, contudo, injusto, pois o espaço ocupado por apenas 1 cidadão (motorista) é 80% maior quando contamos o carro ao redor dele. Se observamos uma rua estreita com 8 ou nove carros, ela esta “tomada” e trancada. Mas não temos mais que nove pessoas causando aquele problema, e na calçada temos um número maior de pedestres usando o espaço urbano, com muito mais harmonia.
Também existe um acréscimo de direito proporcional ao valor do IPVA, com carros mais caros impondo mais direito que carros mais populares. E uma maior indiferença a civilização, quanto mais escuro o isufilme do carro. Não impressiona que o ato do Sr Ricardo Neis, de impor sua passagem por sobre ciclistas, tenha ocorrido em uma cidade cuja o principal assunto dos vereadores (além de dar mais direitos as construtoras) e da mídia seja a proibição de carroças para o melhor uso das vias pelos carros. Em uma cultura de fundo assim, que tem a concordância da maioria (a lei da proibição da carroças foi aprovada), todos são coniventes com o gesto de Ricardo Neis. Pois proibir carroceiros, papeleiros e assemelhados de “atrapalhar” o fluxo não difere de proibir bicicletas, ainda mais incômodas, de obstruirem a passagem do onipontete Sr Automóvel, o único dono e razão de ser da cidade.
Quando o governo Lula passou a subsidiar a compra de mais carros, com a explosão da classe C, o trânsito parou e deu surgimento a SRN em proporções epidêmicas. Esta não é uma doença de indivíduos, é uma doença que precisa ser explicada por um ramo que anda meio “desprestigiado” da psicologia, que é a psicologia social. Esta é uma doença do nosso imaginário social, é uma doença de todos nós, é sim uma doença “social”. Para entende-la melhor, sugiro a compra do livro, não de um psiquiatra, mas de um antropólogo, Roberto Da Matta, que se chama “Fé em Deus e Pé na Tábua”: neste livro o autor mostra o quanto o mimo exagerado, a educação que nos ensina que somos “especiais” (o que ele denomina de “feijaozinho ao lado –e não acima –do arroz”) que damos a nossos filhos, faz do trânsito o lugar de soberanos despóticos e autistas. Somos todos Ricardo Neis e precisamos de metro em Porto Alegre.
Condenar o Sr Ricardo é importante, mas precisamos todos nos ver doentes com a mesma agressividade deste senhor, e precisamos todos de condenação e progresso. Em julgamento no caso de Porto Alegre contra Ricardo Neis esta no banco dos réus nosso modelo de civilização, no banco esta toda a cidade, a nossa prepotência, nossas pequenas imposições diárias, a cidade que não prestigiou suas ciclovias de domingo, a cidade que se irrita com carroças, a conduta de todos que jogamos o carro na frente dos outros carros, os que jogamos o jogo "do quem pisca primeiro" com carros. Se Ricardo for preso (e esperamos que seja), prendam todos nós, o presidente da Ford, o governo Lula, se é que já não estamos todos presos em um monstro engarrafamento eterno. Esperamos sinceramente que este seja o ano da morte do Ricardo Neis que habita em todos os frustrados motoristas que somos, com a vinda do metro de Porto Alegre.
Condenar o Sr Ricardo é importante, mas precisamos todos nos ver doentes com a mesma agressividade deste senhor, e precisamos todos de condenação e progresso. Em julgamento no caso de Porto Alegre contra Ricardo Neis esta no banco dos réus nosso modelo de civilização, no banco esta toda a cidade, a nossa prepotência, nossas pequenas imposições diárias, a cidade que não prestigiou suas ciclovias de domingo, a cidade que se irrita com carroças, a conduta de todos que jogamos o carro na frente dos outros carros, os que jogamos o jogo "do quem pisca primeiro" com carros. Se Ricardo for preso (e esperamos que seja), prendam todos nós, o presidente da Ford, o governo Lula, se é que já não estamos todos presos em um monstro engarrafamento eterno. Esperamos sinceramente que este seja o ano da morte do Ricardo Neis que habita em todos os frustrados motoristas que somos, com a vinda do metro de Porto Alegre.